Fenda Uni-Verso Do Quarto Astral É Uma Viagem Densa

Fenda Uni-verso é o terceiro disco da pernambucana Quarto Astral e o trio não abre mão de sua generosidade para nos fazer viajar densamente!

Quarto Astral Pri Farias
Créditos: Pri Farias

 

Estivemos ao longo da preparação acompanhando de perto os passos que o power trio de Jaboatão dos Guararapes – PE foram dando para a feitura artesanal com que produziram Fenda Uni-Verso (2016). Terceiro disco desses cabras que foi lançado a pouco mais de dois meses e que faz com que o Quarto Astral dê largos passos na ampliação de seu espaço sonoro e nas ideias que ao longo dos seus outros trabalhos eles vem construindo, desenvolvendo, progredindo. 

Existe desde o começo dos anos 90, uma especie de revival da estética do rock de fins dos anos 60 e das melhores coisas feitas na década seguinte. A esse movimento se deu o nome de Stoner Rock. Bandas ao redor de todo o mundo, dos E.U.A a Suécia, buscam nos cânones inspiração. Deram alguns passos atrás para beber em diversos estilos que essas duas décadas viram nascer e que são digamos, talvez a fase mais diversa do rock. Psicodelia, Progressivo, Hard e Space Rock, são apenas alguns gêneros que servem a interesses difusos e misturas inusitadas, servindo como um lindo caldeirão de intensidades de onde pode-se beber múltiplas direções. Porém acreditamos, como já antes apontamos, que esse revival é menos um requentar de velhas referências e formulas, do que a real necessidade artística de buscar nesses espaços sonoros referências para pensar a atualidade, o presente, e consequentemente projetar o futuro.

O Quarto Astral se filia a essas bandas no esforço de trazer-nos novas possibilidades de timbres, novas arquiteturas sonoras e ideias musicais pensando o hoje a partir desta tradição. Mas se esforçam um pouco mais e conseguem com Fenda Uni-Verso, seu novo disco, introduzir-nos a uma potente construção sonora. Com fortes ideias poéticas e conceitos filosóficos que nos remetem a um futuro ainda insuspeito, mas que atualmente se anuncia catastrófico. 

A necessidade de repensarmos nossa posição dentro do Cosmos, como partículas de um todo que nos transcende e para o qual nossa frágil racionalidade não alcança. A busca por entendermo-nos como responsáveis pelo destino de nossa casa maior, Gaia, e nos adequarmos a outro entendimento daquilo que entendemos por Humanidade.

 “Auscultando não a mim, mas ao Logos, é sábio homologar que tudo é Um” (Heráclito, Fragmentos, trad. por E. Carneiro Leão, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980).

A música de abertura, Tudo É Um,  já nos remete de cara a toda uma corrente de pensamento grega, de filósofos originários da estirpe de um Tales de Mileto, mas por seu próprio nome,  principalmente a outro pensador, ao obscuro: Heráclito de Éfeso.

Começando de forma etérea com a guitarra de Thiago Brandão tateando a possibilidade de um caminho, a música segue construindo aos poucos um espaço de reflexão musico-conceitual, com o passeio rufante do kit de bateria feito por Marcelo Rangel. A nave segue entre os perigos da desintegração, para aportar na forte poesia que chega pra questionar nosso modo de ser. A capacidade de nos compreendermos como puro devir dentro dessa natureza transitória e a sua tragicidade essencial. Para acabar com o juízo regulador, centralizador que busca por sua própria natureza dominar e se expandir. Custe o que custar, e o resultado tem se mostrado desolador.

Composição dos três membros da banda, é um petardo musical de exatos 8:00min, que depois de sua longa introdução, segue firme com a linha de baixo do Bruno Brandão, ao longo de toda parte cantada. Para encontrar uma apoteose cheia de peso e mudanças de andamento. Realçando assim a ideia de mudança presente na letra, em seu próprio formato musical. Nascimento, amadurecimento e morte, numa densa explosão, tal qual, estrelas a emitir a luz de sua desintegração. Forma e conteúdo plenamente integrados, os conceitos e ideias que inspiraram essa canção encontraram a mais perfeita tradução.

Em Visões, Thiago larga a guitarra pra pegar a viola e junto ao Marcelo e ao Bruno, executarem um delicioso tema instrumental. Criando um clima que desacelera depois da porrada inicial, e nos dar um pouco de ar pra respirar. Ao mesmo tempo em que seguem num clima progressivo e onírico de busca espiritual, encontrando em A Passagem sua afirmação e continuidade. Os olhos racionalmente viciados em acreditar que conseguem captar a realidade em sua totalidade, são contestados em um exemplar Hard Rock. Mas um petardo que entre outras coisas demonstra a capacidade do trio em dosar a intensidade e a quantidade musical apresentada. Pois seguem de uma música de abertura longa para um tema instrumental mais suave e depois pra uma porrada que não passa dos 3 minutos e pouco. 

Viajantes que se prezam, desbravadores, pioneiros de toda especie precisam dessa capacidade de seguir prudentemente os caminhos. E esses jovens pernambucanos parecem ter alcançado a maturidade musical nesse e em outros sentidos. Algo que fica claro em Fenda Uni-Verso (2016) é justamente a unidade e a qualidade que a obra alcança, tendo os dois primeiros discos servido de preparação para essa viagem. Pós Arvore, pós Quinta Dimensão, navegar nas Fendas que unem os versos, os universos, é missão pra veteranos. E eles se tornaram verdadeiros aprendizes de Don Juan Matus capazes de iniciar os neófitos de modo a fazê-los adentrar esses espaços cósmico-poéticos de descobertas com maestria estética e firmeza ética. Em busca da liberdade total, de sua aceitação, sobretudo.

Seguimos por entre galaxias distantes, em uma velocidade absurda (rapidez e lentidões), algo que certamente não podemos mensurar, quantificar. Viagens através de buracos de minhoca dentro do cotidiano de nossas cidades enfumaçadas e massificantes, até O Contato. Aquela atmosfera caótica, neurótica se desfaz para entrarmos num tête-à-tête com a visão de seres evoluídos. Os protetores de tudo o que mantem de pé o universo, a tecitura mesma do Real. Numa deliciosa viagem lisérgica, o nosso Quarto se Astraliza e conseguimos sentir esse contato através da música produzida pelo entrosamento da guitarra, no andamento preguiçoso e cadenciado de baixo e bateria nos movemos, uma cozinha invejável.

A Arché da Physis é a Água! Tales de Mileto

Considerado o primeiro filosofo grego, Tales vaticinou em sua observação da natureza (Physis) que o principio (Arché) da natureza era a água. E Terráqueossegue essa trilha indiscriminadamente – Onde há água, existe vida! Riff certeiro, andamento forte, daqueles que fazem a cabeça ir pra frente e pra trás, irresistivelmente. Mas um exemplar maravilhoso desse disco forte até os confins do universo.

Seguimos para a próxima faixa, para entendermos que eles estão entre nós, prenhes de destruição. São os reptilianos, capazes de a qualquer momento apertar o botão de nossa dissolução, de colocar em marcha a solução final. Hitler, Mussolini, Stalin, foram seres descendentes dessa raça que encontra na morte sua diversão, seu sentido. Eu quase cometia o erro de dizer que They Are Among Us era a música mais suave do disco, mas a Fenda não comporta suavidade que não proceda da qualidade estética. Nunca no sentido de música leve, o que o Quarto Astral nos apresenta é uma música cheias de metáforas e reflexões, andamentos, cadências, ritmos, letras, solos, riff’s da mais pura densidade musical. Sem ser intelectualoide e nem recair em referências frágeis.

Uma viagem densa em todos os sentidos, com muitas construções complexas para mentes e sentidos embotados por essas vivências afundadas num presente continuo de informações massificadas. E a forte Força Vital é apenas mais uma parada dessa viajem, onde somos novamente levados a pensar o Devir e enfrentar nossa mortalidade constituinte disso que somos enquanto humanos. Seres que deveriam encontrar na passagem do tempo sabedoria, algo que essa viagem por entre Fendas pretende nos ensinar. Uma certa noção afetiva nos é apresentada e nos cabe a todos enquanto especie estarmos atentos a essa origem.

Para finalizar, uma volta ao big bang, Universe In Flames, uma ideia musical muito bem construída do que é e do que somos na relação Eu-Todo, o que nos remete ao começo do texto. Talvez seja sábio afirmar que a noção de Alteridade poucas vezes encontrou em nossa música rocker tamanha variedade de concepção. Variedade, no sentido de que o Outro aqui é visto como tudo que seja natural. Se posicionando contra uma visão burra de tecnologia e do capitalismo, que transforma o natural em algo a ser sacrificado como mais uma mercadoria. E daí, fazemos degringolar todas as outras relações, politicas, afetivas, culturais. Talvez seja possível entender esse disco como uma especie de manifesto contra esse estado de coisas! Re-encantar o humano no sentido de buscarmos nos ligar as forças cósmicas e naturais em busca de harmonia junto a natureza, como parte, e não como meros consumidores.

A maturidade e a qualidade artística, sua relevância mesmo pra nós, encontra em Fenda Uni-Verso, suas canções e ideias, o ponto focal que leva o Quarto Astral ao mesmo pensionato, ou hotel que os grandes nomes de nossa música rock. É um disco robusto, na forma de lidar com questões que sem o devido apuro técnico e conceitual se tornariam mero pastiche Bicho Grilo, Riponga. 

Ao contrário, o Quarto Astral cavalga a  Fenda Uni-Verso abrindo-se e oferecendo-nos como uma linda Supernova, em seu reluzir de cores e direções. Uma verdadeira viagem, um prazer enorme para o pensamento que é capaz de apreender e seguir refletindo sobre seu lugar no mundo. Carl Sagan ficaria orgulhoso, nós estamos…

Nota:         

Produção executiva: Thiago Brandão
Assistente de produção: Bruno Brandão
Produção musical: Quarto Astral
Captação de áudio: Thiago Brandão
Assistente de captação: Peter Noya, Bruno Brandão, Igor Sales
Mixagem: Thiago Brandão, Peter Noya
Assistente de mixagem: Júlia Xavier
Masterização: Peter Noya
Arte: Wendell Nark
Gravado e mixado no estúdio O Mar Astral em Candeias-Pernambuco

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