A morte de uma geração e a atual inércia do “mais do mesmo”

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Será o fim de uma era?

Estava conversando com alguns amigos e escutei a seguinte frase: “Todos os grandes mestres da música parecem estar morrendo. De 2010 pra cá, todo ano, grandes figuras do meio musical se despedem dessa vida. Desse jeito ficaremos, em muito pouco tempo, totalmente órfãos dos grandes ícones”.

Aquilo me deixou pensativo. Cocei a parte de trás da cabeça, como sempre faço quando uma dúvida se apodera dos meus pensamentos. Seria a frase a expressão de uma sensação baseada na subjetividade de uma geração, apenas uma geriátrica nostalgia do passado? Ou seria mesmo uma realidade dramática? Estaríamos, de fato, nos tornando órfãos das grandes referências musicais? Será que as novas gerações não seriam capazes de, além de dar continuidade ao grande legado deixado pelos notórios mestres, avançar em suas conquistas?

A partir das questões acima, explicito aqui as respostas que angariei ao fazer um exercício de observação e reflexão histórica e sociológica do mundo musical nos últimos 50 anos. Se retornarmos ao ano de 1966 poderemos nos posicionar sob uma perspectiva bastante interessante, para, a partir dali, caminharmos até os dias atuais. Mas por que escolher este período dos anos 60 para iniciar essa reflexão?

Ora, se formos pensar nos artistas que estão se despedindo da vida nos últimos anos, devido ao avanço da idade, perceberemos que grande parte destes personagens se destacou no período citado. Além de que, as grandes mudanças políticas e sociais ocorridas naquele momento histórico influenciaram sobremaneira a sui generis produção estética e musical da época, considerada por muitos, ainda marcante nos dias atuais e paradigmática. Há uma sensação geral de que estes artistas são os últimos exemplares de uma nobre linhagem em extinção. Por quê?

Neste início de 2016, figuras como David Bowie, Paul Kantner (do Jefferson Airplane), Maurice White (do Earth, Wind and Fire), George Martin (produtor dos Beatles), Keith Emerson (da ELP) e o percussionista brasileiro Naná Vasconcelos se despediram do mundo dos vivos. Todos eles começaram ou se destacaram em suas carreiras em meados dos anos 60 e foram figuras que participaram de movimentos e grupos musicais que revolucionaram nossa forma de fazer e ouvir música. Pensar nestes artistas é pensar em uma geração especial, a geração que fez a revolução ética dos anos 60. Não só nas artes musicais grandes transformações ocorreram naquele período, mas em muitos outros aspectos da vida coletiva, subjetiva e espiritual das pessoas.

A era dos experimentalismos no século XX

Estas estratosféricas figuras tiveram seus trabalhos e nomes catapultados por uma indústria fonográfica e midiática disposta a investir e apostar vultosos capitais em seus extraordinários talentos. Mesmo que o retorno financeiro não fosse garantido, nos anos 60, a indústria do entretenimento musical estava em condições de testar diversos produtos no mercado, experimentando inúmeros tipos de artistas e abordagens estéticas.

Hoje, é impossível pensar no surgimento de um novo Miles Davis ou Hermeto Pascoal (por exemplo) pelo simples fato de que artistas inovadores e experimentais como eles não são potencialmente lucrativos – pelo contrário, as radicais inovações são rechaçadas pelas planilhas do sucesso comercial. Atualmente, todo produto midiático é lançado no mercado após meticulosas pesquisas de opinião e estudos sobre tendências de consumo. Não há espaços para experimentações e só os produtos com alto potencial de gerarem lucros são disponibilizados ao grande público, amparados por vultosos investimentos em divulgação que devem ser cobertos imediatamente ao iniciarem suas vendas.

A transição entre os anos 1960 e 1970 assinala uma época de grandes transformações que influenciam sobremaneira nossas vidas nos dias atuais. Os avanços tecnocientíficos, o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa via satélite, o surgimento da indústria da publicidade moderna, a guerra fria, os movimentos comportamentais do hippismo, feminismo, ambientalismo, entre tantos acontecimentos marcantes do período, criaram um terreno fértil para inovações em todos os campos da experiência humana. Então, quando olhamos para o universo musical, percebemos nitidamente todas essas influências e podemos constatar que o período citado pode ser considerado um divisor de águas no que se refere à forma de fazer, produzir e divulgar música.

A bossa-nova e suas premissas estéticas só foram possíveis a partir do desenvolvimento tecnológico da captação de áudio. A voz anti-operística, característica determinante dos cantores bossanovistas, tem sua existência tributada à disponibilidade, no mercado, de microfones sensíveis capazes de amplificar, com perfeição, os mais sutis sussurros cantarolados por um João Gilberto da vida, por exemplo. Sem essa inovação tecnológica a existência de uma estética bossanovista seria impossível. Assim como o surgimento do rock progressivo ou do jazz fusion seriam impensáveis sem o aparecimento de equipamentos eletrônicos, como os teclados elétricos e sofisticados aparelhos de reprodução de som, como caixas sonoras de alta fidelidade e mesas de áudio compostas por vários canais.

A Década de 60 como ponto de chegada e partida

Se observarmos alguns estilos musicais, como o jazz, perceberemos que esta vertente da música – que nasceu nas décadas de 10 e 20 do século passado – sofreu durante todo século XX uma evolução gradativa caracterizada por movimentos de aprofundamento e expansão das possibilidades rítmicas, harmônicas e melódicas, além do envolvimento cada vez mais intenso com as questões da negritude. Do dixeieland e swing, passando pelo bebop e hardbop até o free jazz é possível acompanhar um processo de transformações surpreendentes no estilo que ocorreram de forma sequencial, culminando no jazz fusion dos anos 60. Não que outras vertentes não tenham surgido depois, como o acid jazz ou punk jazz, mas elas nada mais são que desdobramentos naturais das técnicas desenvolvidas pelo jazz fusion daquele período.

Se nos atentarmos a chamada Linha Evolutiva da Música Popular Brasileira, perceberemos também que grandes mudanças de paradigma ocorreram no final dos anos 50, com o advento da bossa-nova, e um aprofundamento radical das inovações nos anos 60 com a Tropicália. Certamente que o que veio depois, em termos de MPB, é um resultado; ou seja, um desdobrar das conquistas obtidas ao final dos anos 60. Em resumo, os grandes movimentos de ruptura e de vanguarda foram muito intensos naquele período, provocando grandes aberturas na forma de pensar, fazer e distribuir música.

Até aqui, percebemos que a geração citada (aquela relacionada ao pós-guerra, nascida nos anos de 1940 e com sua juventude usufruída entre os anos 1960 e 1970) vivenciou um período particular da história, sendo capaz de engendrar, a partir do contexto de sua realidade, produtos culturais inovadores que se tornaram referência para quase tudo que veio depois em termos de artes midiáticas. Não é mero saudosismo a sensação de que aquilo que era tocado em larga escala, nas rádios e emissoras de televisão, no período em análise, é muito mais interessante que aquilo que circula pelos grandes veículos de comunicação hoje. Estes artistas, agora septuagenários, que fazem parte de uma safra cultural muito privilegiada, são especiais de fato. Sem dúvida, a mídia já viveu tempos de criatividade e inovações que não existem mais.

A geração do “mais do mesmo”

É preciso destacar que a música continua evoluindo, que novos artistas surgem todos os dias e as ideias se renovam constantemente. A questão é que a realidade histórica da atualidade é outra. Os grandes meios de comunicação desenvolveram sofisticadas técnicas para entreter o público, sendo que o período de experimentalismos já passou, visto que fórmulas seguras foram desenvolvidas em forma de planilhas que hoje são utilizadas de maneira muito eficiente.

Não é preciso mais arriscar os investimentos com novas “receitas de bolo”, pois os caminhos que foram sendo desenvolvidos, a partir de todas as experimentações realizadas no passado, garantem o máximo de rentabilidade a cada produto lançado. Por que investir em um artista personalista que produz algo refinado, que não será consumido em larga escala, sendo que ao se seguir uma planilha – pautada em pesquisas de mercado – é possível criar um produto cultural de consumo garantido?

Os grandes ícones da música não existem mais. Vivemos a era das celebridades descartáveis. O que importa não é mais a qualidade de um produto musical, mas sim a sua capacidade de gerar vultosos capitais em pouco tempo. A imagem se tornou mais importante que o próprio conteúdo e os meios de comunicação expõem apenas aquilo que garantirá alta rentabilidade. Não há mais espaço na televisão e rádio para aquilo que não seja mero produto cultural de entretenimento. Mas, será que essa condição determina o fim da criatividade e da autenticidade na música? Obviamente que não!

Hoje vivemos a era da informação digital e virtual. Com a digitalização das mídias de áudio, a ampliação e democratização das ferramentas de comunicação muita coisa foi alterada no mundo da produção musical. A chamada cena dos artistas independentes é uma realidade marcante de nosso tempo. Embora a grande mídia não esteja atrás de autênticas novidades, o mundo da internet e da cena independente não deixa de oferecer a cada dia algo de novo para o público. Há muitas vantagens e desvantagens no atual cenário. Embora qualquer banda ou artista de talento duvidoso possa produzir música e distribuí-la pela internet, colaborando para o estoque virtual de produtos musicais de péssima qualidade, há muita música de alto nível sendo produzida e veiculada nos ambientes da internet.

O público atual necessita se posicionar de maneira mais ativa em relação ao que consome. Se antes, bastava esperar as grandes novidades aparecerem através da grande mídia para consumi-las, hoje é necessário que o ouvinte procure pela novidade através de pesquisas na internet e visitas às cenas alternativas. Caso contrário, os ouvidos do público continuarão expostos ao “mais do mesmo” oferecido pela televisão e rádio. É por isso que penso que aqueles que reclamam da falta de música de qualidade produzida pelas novas gerações, o fazem porque não possuem o ímpeto da procura e da investigação. Ficam esperando pelos produtos ofertados pela indústria cultural que nada mais são que mercadorias de fácil assimilação e qualidade artística duvidosa. Não devemos esperar mais nada desta fonte. Ela secou! E faz tempo.

Realmente, chegamos a um momento em que os grandes ícones (representantes máximos) da música foram substituídos pelas cenas e movimentos artísticos que se encontram diluídos pelo mundo. Não é mais viável a aparição de uma grande figura que condense todas as nossas expectativas e que tenha a capacidade de refletir os anseios de uma geração. Não há mais espaço para grandes figuras representativas, pois não há hoje estrutura que seja capaz de sustentá-las, visto que os capitais (e os holofotes) migraram em definitivo para os projetos estritamente ligados ao entretenimento de massas.

Portanto, quando sentimos e pensamos que os grandes ícones da música estão em extinção não estamos tendo uma falsa sensação ou apenas expressando um sentimento saudosista em relação aos “bons tempos”, de forma alguma. Este vácuo é uma realidade histórica, porém, isso não significa que os mestres sumiram ou não venham mais a existir. Eles estão por aí, pulverizados por todos os lugares. A questão é que estes artistas não galgarão a posição de destaque que os mestres do passado ocuparam. Daí a sensação de orfandade. Mas não devemos nos sentir desamparados. Por isso que não devemos mais esperar o aparecimento de grandes paradigmas, mas devemos estar atentos às autênticas referências que se encontram diluídas por toda nossa geografia humana.

Por André de Castro Pereira

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